François Delsarte
Tendo como objeto de estudo o corpo europeu do século XIX (um corpo
imerso no contexto da economia industrial e, por isso, bastante inexpressivo e mecanicamente
treinado), Delsarte desenvolveu pesquisa rigorosa sobre expressão corporal,
buscando entender como se exprimem os sentimento humanos e como a gestualidade
corporal se organiza e se relaciona com as emoções.
Para tal, dirigiu sua atenção para o movimento cotidiano das pessoas em
praças, hospitais, na rua; observou a expressividade do corpo na arte (em
atuação no teatro, expresso em pinturas e esculturas), também estudando e
participando de aulas de anatomia.
A partir dessas observações, realizou inúmeras anotações e
desenhos e estabeleceu um conjunto de preceitos, ensinados entre 1839 a
1859, em Paris, no “Curso de Estética Aplicada”, do qual participaram pintores,
escritores, compositores, advogados, padres, atores e cantores, oradores.
Para Delsarte, o ser humano é constituído por uma tríplice dimensão:
VIDA-ALMA-ESPÍRITO.
Cada dimensão estaria relacionada a um dos três estados interiores:
ESTADO SENSÍVEL (âmbito das sensações);
ESTADO MORAL (âmbito dos sentimentos); e
ESTADO INTELECTUAL (âmbito do pensamento),
sendo que cada um desses estados correspondem a uma das três modalidades
expressivas exteriores (VOZ – GESTO – PALAVRA).
O modo como a expressividade da voz, do gesto e da palavra podem
acontecer, para Delsarte, também respeita uma tríplice possibilidade:
EXCÊNTRICA – voltada para fora e mais ligada à porção da VIDA; NORMAL –
equilibrada e mais ligada à porção da ALMA; e CONCÊNTRICA – voltada para dentro
e mais ligada à porção do
ESPÍRITO.
Exemplifica a aplicação desta tríade, proposta por Delsarte, no movimento das mãos:
Existe um centro nas coisas, nos gestos, nos movimentos, e duas forças
que se deslocam
para fora (do centro) ou para dentro.
As mãos, por exemplo, relaxadas em estado de normalidade, representam a
qualidade gestual NORMAL. Mãos abertas, estendidas, indicam uma gestualidade
EXCÊNTRICA.
Por fim, se as mãos estiverem fechadas, contraídas, serão enquadradas
como uma gestualidade CONCÊNTRICA.
Num período onde a dicotomia corpo/alma constituía o entendimento
epistemológico predominante, é a unidade corpo/alma que Delsarte parece querer
recuperar, uma percepção do ser humano em sua totalidade. E seguindo a ideia de
totalidade, o segundo princípio parte do reconhecimento de que as três
dimensões do homem – a vida, a alma e o espírito, já mencionadas acima – formam
uma unidade. Para Delsarte, tais princípios atuam de forma relacional.
Outras conclusões delsartianas, relativas à expressividade dos movimentos,
destacam algumas posições gestuais específicas. Os movimentos em oposição, aqueles nos
quais duas partes do corpo se movem ao mesmo tempo, mas em sentidos opostos, dá a
um movimento sua expressividade máxima.
Se, para afirmar ou convencer levamos nosso braço e nossa mão à frente,
o gesto é fraco, mas se, ao mesmo tempo, fizermos com o rosto um movimento para
trás e recuarmos um ombro ou mesmo a cabeça, o gesto alcança toda sua
intensidade, seu realce, sua autoridade.
O paralelismo, quando duas partes do corpo se movem ao mesmo tempo e na
mesma direção, é mais uma importante organização expressiva do movimento e
indicaria um sentido de fraqueza: “São os movimentos simétricos como aqueles de
súplica e de oferenda.” Além dessas posições, os estudos delsartianos também
destacam a noção de sucessão: a ocorrência dos movimentos envolve o corpo todo
e acontece em cada músculo, cada osso, cada articulação.
Sucessão seria “a grande ordem de movimento para a expressão da emoção”.
Ele diz que a sucessão fundamental é a que, partindo do tronco, põe em
movimento o ombro, depois o braço, o cotovelo, o antebraço, o pulso, a mão e os
dedos, sendo que o impulso central mobiliza o corpo inteiro por ondas
sucessivas, rigorosamente dirigidas e controladas.
Mas as sucessões também podem ocorrer da periferia para o centro do
corpo.
"O gesto é mais que o discurso. Não é o que dizemos que convence,
mas a maneira de dizer. O gesto é o agente do coração, o agente persuasivo. Cem
páginas, talvez, não possam dizer o que um só gesto pode exprimir, porque num
simples movimento, nosso ser total vem à tona, enquanto que a linguagem é
analítica e sucessiva".
Geneviéve Stebbins (1857-1915), professora de Dança e educadora
feminina, integrou o delsartismo à sua prática, sistematizando e publicando
estudos que demonstram essa ligação. Mas seu nome merece ser destacado, uma vez
que influenciou Isadora Duncan (1877-1927), Ruth Saint Denis (1879-1968) e Loi
Füller (1862-1928), as três principais figuras da Nova Dança do início do
século XX que fomentaram discussões acerca dos princípios
técnico-expressivos do corpo.
De acordo com Bourcier (2001) e Ropa, Isadora Duncan foi aluna de
Stebbins e, apesar de estar pouco voltada às aulas e métodos de dança,
mostrou-se totalmente envolvida pelos princípios delsartianos através de sua fé
profunda na unidade corpo-alma e na relação entre expressividade e sentimento.
Suas movimentações, de natureza bastante improvisacionais, partiam das
qualidades oriundas da relação sentimento-expressão e privilegiavam formas
corporais em oposição (a exemplo do movimento de jogar a cabeça para trás)
combinados com a estética artístico-sensual da estatuária grega e dos elementos
da natureza.
Sobre Ruth Saint Denis, as mesmas referências informam que foi educada
por um treinamento físico-espiritual fundamentado no método de Delsarte, desenvolvido por
sua própria mãe, Emma, que seguia obstinadamente o pensamento delsartiano
interpretado a partir do modelo de Stebbins.
Seguindo a visão filosófica delsartiana, Ruth verá no corpo um meio para
exaltar o espírito e introduzirá esta forma de treinamento gestual na proposta
pedagógica da Danishawnschool, escola de dança fundada por volta de 1915, com
Ted Shawn (1891-1972), seu marido e outra importantíssima figura dentro da história
da Dança Moderna americana.
As temporadas e viagens à Europa feitas por Duncan, Füller e Saint-Denis
permitiram o intercâmbio de suas propostas artísticas com o contexto europeu de
Dança naquele período, ainda bastante ligado à prática e à estética do
academicismo clássico. Mas, paralelamente, os estudos de Delsarte já começavam
a dialogar com o referencial do Expressionismo e, mais especificamente, da
dança expressionista alemã, inaugurada por Rudolf von Laban (1879-1958)*.
Laban estudou com alunos de Delsarte e, como ele, debruçou-se de forma
minuciosa sobre seu objeto de estudo: o movimento, suas qualidades e dinâmicas.
MADUREIRA, José Rafael. François
Delsarte: personagem de uma dança (re) descoberta. 183 f. 2002.)